O primeiro Golpe brasileiro

Ninguém registrou o dia, mas o mês era março, em 1840. Pedro de Araújo Lima tinha 46 anos quando chegou ao Palácio Imperial, afastado do centro do Rio alguns quilômetros. Um homem calvo de cabelos castanhos e os olhos azuis tão comuns na elite pernambucana. Regente do Brasil. Alguns historiadores descrevem este período, entre a abdicação de Pedro I e a ascensão de seu filho, como um flerte do país com a República. De certa forma, Araújo Lima era um presidente. Mas não tinha planos de continuar no cargo. Estava ali, em São Cristóvão, com uma proposta para o príncipe herdeiro. Planejava um Golpe de Estado.
 
Aos 14 anos, o futuro monarca falava com uma voz esganiçada, tinha as pernas muito finas e o queixo comprido, sina de quase todo Habsburgo. Mais tarde, quando a fase imberbe passou, deixaria a barba disfarça-lo e ganharia cara de homem. Agora, não. Era bem menino. O regente explicou-lhe o plano em detalhes e então perguntou sua opinião. “Não tenho pensado nisso”, respondeu-lhe o príncipe, conforme descreve a historiadora Lilia Moritz Schwarcz em As Barbas do Imperador. Araújo Lima, que ainda demoraria uns anos para se tornar Marquês de Olinda, ficou surpreso. “Vossa Majestade não tem pensado no negócio?”, perguntou. “Já tenho ouvido falar mas não tenho dado atenção.”
 
Pedro I abdicou em abril de 1831, quando seu filho tinha 5 anos e o país independente ainda não havia completado 8. A Constituição de 1824 definia que a maioridade para assumir o trono só ocorreria aos 21 mas, dada a surpreendente ausência de um imperador, reformou-se a lei para fixa-la aos 18. De pouco adiantou: com aparência de acéfalo, o país entrou em convulsão. Explodiram inúmeras revoltas do Pará (Cabanagem) ao Rio Grande (Farroupilha), incluindo Maranhão (Balaiada), Bahia (Sabinada e Malês), Minas (Carrancas) e Rio (Manuel Congo).
 
Para tentar sufocá-las, os regentes que gerenciaram o Estado durante aqueles nove anos não pararam de trabalhar um segundo. Porque o trabalho não era pouco. O Brasil, tão jovem, estava sendo inventado e o maior medo dos políticos é que ele se espatifasse como ocorrera na América espanhola. Se Pedro I havia imaginado um país de poder centralizado, as revoltas todas passavam uma mensagem distinta, embora confusa. As províncias queriam mais autonomia. E os regentes, acuados, fizeram de tudo para concedê-la. Foram criados poderes legislativos locais. Instaurou-se a Guarda Nacional, regimentos militarizados sob controle da elite local e independentes dos militares. Mas as tensões persistiam. Algumas das rebeliões, ainda por cima, eram levantes abolicionistas.
 
Apavoradas, as elites econômicas percebiam o risco de perder o status e o mando.
 
Não é à toa que consideravam os regentes frágeis. Dentre os maiores medos estava o de que a monarquia entrasse em ruína e, dela, nascesse uma república de fato com direitos distribuídos. Nem os políticos conservadores, nem os liberais, desejavam algo do tipo. Uns, conservadores, uniram-se em torno do Partido Regressista. Defendiam o regresso de Pedro I. Os liberais, como Araújo Lima, puseram-se a trabalhar pela antecipação da maioridade. E trabalharam duro, cercando de simbolismos o príncipe. O último regente estabeleceu a cerimônia do Beija-Mão, e foi o primeiro a beijá-la, tentando mandar o sinal de que havia algo acima de seu cargo. Os políticos não eram lá muito bem vistos, mas o príncipe era querido.
 
Foi um “Golpe Parlamentar da Maioridade”, nas palavras de Bernardo de Vasconcelos, o senador conservador que ocupava a pasta de ministro de Estado e de Negócios. A expressão golpe, assim, entrava no vernáculo brasileiro. Vasconcelos tentou evita-lo, adiando a formação da Assembleia Nacional. Foi bombardeado. Havia clamor popular pela ascensão do imperador. Na história oficial, o diálogo do príncipe com Araújo Lima ficou registrada de outro jeito. “Quero já”, teria respondido o rapaz. Era preciso que ele parecesse decidido e não o rapaz introvertido que de fato era, isolado num palácio, dedicado aos estudos e completamente alienado da vida pública. Os políticos passaram aqueles nove anos de regência discutindo em seu nome e o jovem Pedro mal se importava.
 
A Assembleia terminou formada e aprovou lei antecipando a maioridade. A Constituição, porém, não lhe dava direito de fazê-lo. Os liberais conseguiram burlar a Carta porque, no fim, para os conservadores a maioridade se mostrou um mal menor perante a insegura continuidade das regências. Ao ser coroado, em 18 de julho de 1841, tinha 15 anos de idade.

Deu certo em seu objetivo: o Segundo Império foi um período de paz entre as convulsões da regência e da República Velha.

Mas o que é um Golpe de Estado?

É curioso que Bernardo de Vasconcelos tenha chamado de Golpe Parlamentar a Maioridade. Foi realmente um Golpe e a expressão já era usada com muitos sentidos desde meados do século 18. Mas a consagração mesmo, do francês coup d’état, veio dez anos após, em 1851. Foi quando Louis-Napoleon Bonaparte dissolveu a Assembleia Nacional, instaurando novamente o Império e sagrando-se Napoleão III.
 
Golpe de Estado tem definição muito específica. (Há um um bom estudo sobre o tema para quem desejar.) Ocorre quando um dos órgãos do Estado, de forma inconstitucional, assume o poder. Golpes quase sempre contam com o apoio das Forças Armadas – quando não são elas próprias que o perpetuam. Golpes servem para perpetuar no poder um grupo que se sente de alguma forma ameaçado. Pode, ou não, contar com o apoio da sociedade.
 
É o que ocorreu no caso da Maioridade: um órgão do Estado (o Parlamento), com apoio tácito dos militares, aprovou uma lei inconstitucional para mudar o regime de forma a garantir o poder de elites que se sentiam ameaçadas. Aliás: foi só Pedro II assumir o trono e os legislativos provinciais foram dissolvidos, retornando o país a uma centralização. Não era o jovem imperador quem estava no comando, claro.
 
Houve muitos Golpes de Estado no Brasil desde então. A lista indiscutível é esta: em 1889, a Proclamação da República foi um Golpe Militar. Como foi também um Golpe Militar, em 1930, o fim da República Velha. Getúlio Vargas foi levado ao poder por este Golpe, deu ele próprio um segundo, em 1937, ao instaurar o Estado Novo outorgando-se poderes ditatoriais. Foi apeado por um terceiro Golpe Militar, em 1945. O Golpe Militar seguinte ocorreu em 1964.
 
Há pelo menos dois casos muito sutis nos quais os mais rigorosos podem sugerir que tenha havido Golpe. Em 1961, o Congresso Nacional alterou as regras vigentes para instaurar um regime parlamentarista, evitando que João Goulart pudesse presidir com os poderes que seu antecessor tivera. O Congresso tinha poderes constitucionais para fazê-lo. Mas a tradição sugere que leis não deveriam retroagir. Mudar as regras por conta de um presidente específico cheira mal. Outro caso similar, embora mais complexo, foi o da aprovação da Emenda Constitucional nº 16, de junho de 1997. Instaurou a reeleição. Pelo mesmo argumento, deveria valer apenas para o presidente e os governadores eleitos no ano seguinte. Mas é um argumento bem mais frágil. Afinal, ninguém chegou a um segundo mandato sem ter, antes, passado por uma eleição.